Brazil has more maternal deaths associated with Covid-19 than 8 countries combined

Posted in 28 de May de 2020
Imagem de reportagem da TV Record sobre a morte de Asheelley, aos 17 anos. Acusação de negligência partiu da família. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo negou, porém, que tenha havido falhas na assistência

Renata Moura

Journalist

Asheelley Vieira Santos tinha 17 anos quando viu sua história se transformar em pesadelo, em São Paulo.

Ela estava no sexto mês de gravidez quando sentiu dores, perdeu o bebê e, após internação para retirá-lo, acabou morrendo no hospital com supostos sintomas de Covid-19.

Cleide, Selidalva, Priscila, Marília, Aline, Viviane, Rafaela, Regivane, Saionara, Daiane, Joyce, Glaucia, Eliane e outras seis brasileiras não identificadas com nomes – incluindo uma no Rio Grande do Norte – também teriam morrido enquanto grávidas ou dias após o parto em casos divulgados como suspeitos ou confirmados da doença na mídia, em fontes oficiais ou em registros de hospitais. 

O fim trágico das mulheres teria ocorrido entre março e maio deste ano e foi identificado em um levantamento global que o Instituto Santos Dumont (ISD) realizou durante um mês e divulga nesta quinta-feira (28), Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. O ISD é uma Organização Social do governo federal vinculada ao Ministério da Educação e referência em ensino, pesquisa, extensão e assistência à população – via Sistema Único de Saúde (SUS) – nas áreas de saúde materno-infantil, da pessoa com deficiência, em neurociências e neuroengenharia.

O levantamento sobre a mortalidade materna associada à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, faz parte de uma série de publicações do Instituto voltada à saúde de mulheres grávidas ou na fase pós-parto durante a pandemia.

Click here para acessar ilustrações e here para ver informativo a respeito. Já no infográfico a seguir veja dados sobre a mortalidade:

 

Mortes mapeadas

Por falta de estatísticas oficiais no período do levantamento, as histórias de mortalidade materna foram mapeadas  pelo Instituto Santos Dumont principalmente a partir de reportagens veiculadas em portais de notícias e TVs no Brasil e no exterior. Em três casos, foram usadas informações divulgadas por fontes oficiais ou hospitais que mencionavam vítimas supostamente de Covid-19. A pesquisa abrangeu textos e vídeos publicados em português, inglês e espanhol (clique aqui para ver os dados).

Dos 39 casos encontrados, 20 estão no Brasil. O número supera o de 8 países juntos, inclusive os dos Estados Unidos e do Reino Unido, que até a publicação desta reportagem lideravam em mortes gerais provocadas pela doença, segundo a Organização Mundial da Saúde.

“Temos neste momento uma visibilidade sem precedentes para a questão da mortalidade materna no país – um desafio ainda distante de ser superado e que demanda estratégias urgentes para garantir a maternidade segura”, analisa Reginaldo Freitas Júnior, diretor-geral do ISD, doutor em ciências médicas pela USP, professor do Departamento de Tocoginecologia da UFRN e Instrutor Nacional da Estratégia Zero Morte Materna por Hemorragia Pós-parto da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS).

Ele afirma que o entendimento inicial do Ministério da Saúde de que as grávidas não estavam entre os grupos da população mais vulneráveis aos efeitos do vírus subestimou carências de estrutura e atendimento antigas, que já deixavam as mulheres em risco. Apenas na semana de 13 de abril grávidas e puérperas foram inseridas  pelo governo no chamado “grupo de risco” – demandando cuidados reforçados.

Veja abaixo entrevista exibida em 29/05, na InterTV, afiliada Globo, sobre o levantamento do ISD a respeito da mortalidade materna:

‘Fragilidades antigas mostram pior face na pandemia’

“O que parece”, segundo Freitas Júnior, “é que a Covid-19 está trazendo à tona importantes fragilidades da rede de assistência à saúde materna, que pré-existiam, muitas delas cronicamente, mas que numa situação como essa de pandemia mostram a sua pior face”.

Um exemplo que cita é relacionado a carências do pré-natal no final da gravidez. “É um problema que tentamos combater há anos, mas que ainda é real em muitas cidades. O final da gestação é um período muito mais sujeito a complicações, é onde há a incidência de muito mais riscos à saúde materna, mas deixa-se de garantir a essas gestantes os retornos semanais de avaliação até a época do parto”, diz. 

“É como se o pré-natal tivesse acabado e agora bastasse procurar a maternidade se sentirem dor ou tiverem sinais de trabalho de parto, quando romper bolsa, apresentarem sangramento, mas não deve funcionar assim. O final da gestação é um período de muita vulnerabilidade e a gestante precisa ter a garantia de pelo menos uma consulta semanal até o neném nascer, mas isso não acontecia antes e agora em função da pandemia, mais ainda. Essa garantia não está sendo cumprida e muitas gestantes estão sem esse cuidado, sem esse amparo, sem a vigilância necessária em um momento de maior risco”. 

Diretor-geral do ISD aponta riscos que carências de pré-natal podem trazer na gravidez, especialmente nos meses finais | Foto: Rodrigo Nunes – ASCOM/MS

‘Peregrinação para parir’

Outro ponto de fragilidade que ele aponta é a falta de vinculação de muitas gestantes a uma maternidade ou serviço de referência para o parto. Em outras palavras, muitas mulheres não têm a garantia de onde vão parir. “Elas fazem o pré-natal no SUS e isso não garante a elas o lugar, a maternidade que vai recebê-las no momento do parto. A peregrinação para parir ainda é uma realidade brasileira, e ainda é uma realidade nordestina. Essas mulheres muitas vezes chegam a percorrer grandes distâncias, e até mais de um município em busca de uma maternidade, de um hospital que garanta assistência ao parto”. 

O especialista analisa a situação como “uma flagrante violação de direitos que compromete a segurança das gestantes, coloca em risco o resultado da gravidez e indubitavelmente é um fator que potencializa a ocorrência da mortalidade materna”. As mulheres citadas nesta reportagem estavam em diferentes fases da gravidez ou do período pós-parto quando morreram. As notícias que enfocam suas mortes não detalham se problemas como os citados pelo especialista  foram registrados. Familiares de Asheelley e Glaucia, entretanto, disseram, em entrevista à TVRecord e ao G1 que elas não receberam a assistência médica necessária nos últimos dias de vida.

A mãe de Asheelley e a família de outra mulher, Priscila, afirmam ainda que elas contraíram Covid-19 no hospital. As secretarias de saúde de São Paulo e do Rio  de Janeiro negaram falhas nos casos.

Glaucia, que morreu em 24 de março, chegou a ser isolada com suspeita de coronavírus, mas o resultado do teste deu negativo | Imagem: Reprodução G1

Pré-natal: Mulheres ficam privadas de serviço e mais vulneráveis

Na reorganização dos serviços de saúde por causa da pandemia, muitas cidades brasileiras entenderam que o acompanhamento pré-natal e serviços de planejamento familiar não eram essenciais e poderiam ser suspensos –  e isso trouxe “grandes prejuízos e riscos às mulheres”, segundo o diretor do ISD. Elas acabaram, diz ele, privadas de acompanhamento e mais vulneráveis neste momento.

“Isso além de trazer prejuízo à segurança das mulheres, traz o risco de a gente ter, além de complicações inerentes à Covid-19, um aumento do risco obstétrico por outras complicações, como hipertensão na gestação, falta de controle do diabetes gestacional, risco de parto prematuro e de tratamento não adequado (e não oportuno) de infecções ”, observa Freitas Júnior. “Pré-natal é essencial e não pode parar, no SUS e na rede privada, mesmo o pré-natal da gravidez de baixo risco. Ele tem que ser garantido às gestantes brasileiras”. 

Mortes nos estados

Os casos de mortalidade materna associados à Covid-19 mapeados pelo Instituto Santos Dumont  estão distribuídos entre 11 estados, sendo a maioria no Rio de Janeiro (20%) e São Paulo (20%). É no Norte e no Nordeste, entretanto –  regiões que já ostentavam as maiores taxas gerais de mortalidade materna do Brasil, segundo os dados oficiais mais recentes – que estão os piores cenários em uma comparação de taxas de mortalidade por 100 mil habitantes. 

Amapá, Paraíba, Amazonas e Rio Grande do Norte registram, respectivamente, os piores índices considerando esse parâmetro, segundo o levantamento. Na sequência estão Espírito Santo, Pará, Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e Bahia.

Eliane Ramos Rodrigues morreu com o novo coronavírus, em Manaus. Ela estava grávida de oito meses | Imagem: Reprodução Isto É

De forma global, a análise mostra que o Brasil concentra 51,28% das mortes de mulheres grávidas ou que tiveram bebês recentemente no mundo, associadas à suspeita ou confirmação de Covid-19. 

Os dados sugerem que o país tem não só mais vítimas do que outros juntos, mas também a maior taxa de mortes maternas supostamente por Covid-19, por 100.000 habitantes. O número é 21,20% superior ao do Reino Unido, por exemplo, o segundo país em mortes nessa lista, mas, segundo Freitas Júnior, reconhecido como modelo em termos de rede de atenção materna e garantias dos direitos das mulheres. A distância entre os dois países nesse campo também pode ser medido pelos dados mais recentes da Razão de Mortalidade Materna (MMR) divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um retrato das mortes maternas por 100.000 nascidos vivos. O número britânico é quase nove vezes menor que o brasileiro.

  • O assunto foi tema da reportagem “Taxa de mortalidade materna por coronavírus é maior no Brasil do que em 8 países do mundo juntos”, publicada no jornal O Povo, do Ceará. Clique aqui para ler.

Fatores diretos e indiretos fazem quase 40 mil vítimas 

Até a conclusão do levantamento do ISD não existem estatísticas oficiais sobre causas de mortes maternas diretas ou indiretas, como seria a Covid-19, este ano no Brasil. Um boletim publicado nesta semana pelo Ministério da Saúde mostra, entretanto, que, “de 1996 a 2018, foram registrados 38.919 óbitos maternos no país, dos quais aproximadamente 67% por causas obstétricas diretas, ou seja, por complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas”. Os principais motivos identificados são hipertensão, hemorragia, infecção puerperal e aborto.

Já as causas obstétricas indiretas, segundo o Ministério da Saúde, resultam de doenças pré-existentes à gestação ou que se desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas obstétricas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez. São exemplos dessas causas doenças do aparelho circulatório, doenças respiratórias, AIDS e doenças infecciosas e parasitárias maternas. Segundo o boletim, entre 1996 e 2018, as causas indiretas foram responsáveis por 29% das mortes maternas. As demais foram classificadas como causas obstétricas inespecíficas.

O documento chama a atenção para o fato de, em 2009, o surto de influenza A (H1N1) ter contribuído para o aumento de óbitos por causas obstétricas indiretas, mas não analisa a tendência com a Covid-19.

Asheelley, citada no início desta reportagem, foi a mais jovem entre as vítimas da doença identificadas pelo ISD. O atestado de óbito apontou infecção por coronavírus. Mas a família  – no canal de TV onde a morte foi noticiada – acusou o hospital de negligência, alegando demora no atendimento e que ela ficou exposta aos perigos da Covid-19 no hospital. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo negou, na mesma reportagem, e disse que ela recebeu a assistência necessária.

*Texto atualizado após publicação, para acréscimo de informações.

SAIBA MAIS SOBRE O LEVANTAMENTO DO ISD

O levantamento sobre mortes maternas associadas à Covid-19 foi realizado pelo ISD entre os dias 24/04/2020 e 26/05/2020. A pesquisa foi feita a partir de palavras-chave relacionadas à gravidez, parto e Covid-19, em notícias publicadas em português, inglês e espanhol. Casos encontrados em outras fontes, que não reportagens, foram confirmados junto a fontes oficiais após relatos recebidos pelo ISD sobre mortes nos respectivos estados. O mapeamento levou a casos que teriam ocorrido entre 13 de março (na Polônia) e 24 de maio de 2020 (na Índia). No Brasil, as mortes teriam ocorrido entre 21 de março (em São Paulo) e 23 de maio (Paraíba e no Rio de Janeiro). A de Asheelley, citada no início da reportagem, foi no dia 16 deste mês. Ela teria sido a mais jovem das vítimas. No Brasil, as reportagens que informam idades citam mulheres de 17 a 43 anos*. As que aparecem com nome são Cleide, Selidalva, Priscila, Marília, Aline, Viviane, Rafaela, Regivane, Saionara, Daiane, Joyce, Asheelley, Glaucia e Eliane. No exterior, as mulheres identificadas tinham entre 20 e 43 anos. As que viraram notícia e tiveram nomes divulgados são Eli, Mary Agyeiwaa, Wafa, Fozia, Andrea, Shakeela, Estefanía, Salina, Wegene e Gabriela. De forma global, as mulheres estavam em diferentes estágios de gestação: do “início” (10 semanas) até os 9 meses. A maioria dos partos foi cesárea. Os casos têm ganhado repercussão sem precedentes na mídia e em outras plataformas de comunicação, como as redes sociais. Foi no Facebook, por exemplo, que uma estudante brasileira de doutorado em medicina passou a compartilhar links de reportagens com histórias de mortes de grávidas e puérperas supostamente por Covid-19. Entre as mortes que cita nesse "mapa de reportagens" estão a de Wegene Debele, imigrante etíope de 43 anos que morreu no estado de Washington após o parto, as Mary, Salina e Fozia, na Inglaterra, a Estefanía, na Espanha, e a de Gabriela, no México. Mas é no Brasil que aponta a maioria das vítimas à época: Rafaela, Viviane, Priscila e duas outras mulheres com identidades não reveladas. As mortes por Covid-19 ou não estão sujeitas a confirmações por investigação oficial pelas equipes técnicas da Vigilância Epidemiológica - MS/SVS/CGIAE. Informações do Ministério da Saúde, divulgadas depois do levantamento do ISD, dão pistas do cenário oficial. Os dados mostram que ao menos 484 grávidas foram infectadas pelo novo coronavírus no Brasil e que 36 morreram em decorrência da doença causada por ele, a Covid-19. O boletim não deixa claro se puérperas - as que tiveram bebê recentemente - estão nessa contagem. Se estiverem, Rafaela, da Bahia, Saionara, do Amapá, e uma mãe que o governo do Maranhão descreve como "mulher que foi a óbito, 31 anos, puérpera de óbito fetal" podem ter ficado fora da lista. *O mix de fotos usado na reportagem mostra, da esquerda para a direita: (1ª fileira) Priscila, Marília, Selidalva e Cleide. (2ª fileira) Aline, Viviane, Regivane e Saionara. (3ª fileira) Daiane, Joyce, Rafaela e Asheelley. Glaucia e Eliane também aparecem em fotos na reportagem. Imagens das outras mulheres não foram encontradas até a publicação deste texto, ou foram impossíveis de identificar por meio dos registros de suas mortes.

Nota do Instituto: "A ponta do iceberg"

O levantamento do Instituto Santos Dumont usa uma fonte de informações empregada e validada por pesquisadores no mundo inteiro - e mostra somente a ponta do iceberg desse problema que é crônico e um desafio amplamente reconhecido pela comunidade dos profissionais de saúde do Brasil. Não se trata de uma pesquisa científica. Mas de um alerta. O que o Instituto está fazendo é dar visibilidade à morte materna e chamar a atenção para o fato de nos últimos dois meses a mídia ter veiculado muito mais notícias relacionadas a esse problema do que o fez na última década. É para isso que estamos chamando a atenção. É para a importância de toda a sociedade brasileira entender a mortalidade materna como um problema crônico e que precisa ser enfrentado por todos. A análise do Instituto mapeou 20 mortes no Brasil em um momento em que não havia estatísticas oficiais e, após concluído, um levantamento do próprio Ministério da Saúde apontou 484 mulheres grávidas infectadas pelo novo coronavírus no país e 36 mortas em decorrência da doença causada por ele, a Covid-19. Alguns estados em que o ISD confirmou mortes em boletins oficiais de governo não aparecem nessa conta. Nem todos os casos que o Ministério apresenta também viram notícia. A análise do ISD é um retrato da realidade que não é definitivo, mas que leva a conclusões parecidas com a do próprio governo. A mortalidade materna carece de visibilidade e de solução. Os números são alarmantes e devem ser de conhecimento do público. O Instituto não publicou os dados como uma publicação científica, mas sim na perspectiva da responsabilidade social que vem demonstrando com essa causa em diversos projetos e ações ao longo da sua trajetória. Esse é um tema que o Instituto trabalha e para o qual chama a atenção há muitos anos. Isso não é de hoje.

Text:  Renata Moura / Journalist / Ascom – ISD

Infographic: Renata Moura

Foto 1: Montagem com fotos divulgadas em diversas reportagens sobre mortes maternas associadas à Covid-19 no Brasil. Imagem mostra parte das vítimas.

Communication Office
comunicacao@isd.org.br
(84) 99416-1880

Santos Dumont Institute (ISD)

It is a Social Organization linked to the Ministry of Education (MEC) and includes the Edmond and Lily Safra International Institute of Neurosciences and the Anita Garibaldi Health Education and Research Center, both in Macaíba. ISD's mission is to promote education for life, forming citizens through integrated teaching, research and extension actions, in addition to contributing to a fairer and more humane transformation of Brazilian social reality.

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Imagem de reportagem da TV Record sobre a morte de Asheelley, aos 17 anos. Acusação de negligência partiu da família. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo negou, porém, que tenha havido falhas na assistência

Renata Moura

Journalist

Asheelley Vieira Santos tinha 17 anos quando viu sua história se transformar em pesadelo, em São Paulo.

Ela estava no sexto mês de gravidez quando sentiu dores, perdeu o bebê e, após internação para retirá-lo, acabou morrendo no hospital com supostos sintomas de Covid-19.

Cleide, Selidalva, Priscila, Marília, Aline, Viviane, Rafaela, Regivane, Saionara, Daiane, Joyce, Glaucia, Eliane e outras seis brasileiras não identificadas com nomes – incluindo uma no Rio Grande do Norte – também teriam morrido enquanto grávidas ou dias após o parto em casos divulgados como suspeitos ou confirmados da doença na mídia, em fontes oficiais ou em registros de hospitais. 

O fim trágico das mulheres teria ocorrido entre março e maio deste ano e foi identificado em um levantamento global que o Instituto Santos Dumont (ISD) realizou durante um mês e divulga nesta quinta-feira (28), Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. O ISD é uma Organização Social do governo federal vinculada ao Ministério da Educação e referência em ensino, pesquisa, extensão e assistência à população – via Sistema Único de Saúde (SUS) – nas áreas de saúde materno-infantil, da pessoa com deficiência, em neurociências e neuroengenharia.

O levantamento sobre a mortalidade materna associada à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, faz parte de uma série de publicações do Instituto voltada à saúde de mulheres grávidas ou na fase pós-parto durante a pandemia.

Click here para acessar ilustrações e here para ver informativo a respeito. Já no infográfico a seguir veja dados sobre a mortalidade:

 

Mortes mapeadas

Por falta de estatísticas oficiais no período do levantamento, as histórias de mortalidade materna foram mapeadas  pelo Instituto Santos Dumont principalmente a partir de reportagens veiculadas em portais de notícias e TVs no Brasil e no exterior. Em três casos, foram usadas informações divulgadas por fontes oficiais ou hospitais que mencionavam vítimas supostamente de Covid-19. A pesquisa abrangeu textos e vídeos publicados em português, inglês e espanhol (clique aqui para ver os dados).

Dos 39 casos encontrados, 20 estão no Brasil. O número supera o de 8 países juntos, inclusive os dos Estados Unidos e do Reino Unido, que até a publicação desta reportagem lideravam em mortes gerais provocadas pela doença, segundo a Organização Mundial da Saúde.

“Temos neste momento uma visibilidade sem precedentes para a questão da mortalidade materna no país – um desafio ainda distante de ser superado e que demanda estratégias urgentes para garantir a maternidade segura”, analisa Reginaldo Freitas Júnior, diretor-geral do ISD, doutor em ciências médicas pela USP, professor do Departamento de Tocoginecologia da UFRN e Instrutor Nacional da Estratégia Zero Morte Materna por Hemorragia Pós-parto da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS).

Ele afirma que o entendimento inicial do Ministério da Saúde de que as grávidas não estavam entre os grupos da população mais vulneráveis aos efeitos do vírus subestimou carências de estrutura e atendimento antigas, que já deixavam as mulheres em risco. Apenas na semana de 13 de abril grávidas e puérperas foram inseridas  pelo governo no chamado “grupo de risco” – demandando cuidados reforçados.

Veja abaixo entrevista exibida em 29/05, na InterTV, afiliada Globo, sobre o levantamento do ISD a respeito da mortalidade materna:

‘Fragilidades antigas mostram pior face na pandemia’

“O que parece”, segundo Freitas Júnior, “é que a Covid-19 está trazendo à tona importantes fragilidades da rede de assistência à saúde materna, que pré-existiam, muitas delas cronicamente, mas que numa situação como essa de pandemia mostram a sua pior face”.

Um exemplo que cita é relacionado a carências do pré-natal no final da gravidez. “É um problema que tentamos combater há anos, mas que ainda é real em muitas cidades. O final da gestação é um período muito mais sujeito a complicações, é onde há a incidência de muito mais riscos à saúde materna, mas deixa-se de garantir a essas gestantes os retornos semanais de avaliação até a época do parto”, diz. 

“É como se o pré-natal tivesse acabado e agora bastasse procurar a maternidade se sentirem dor ou tiverem sinais de trabalho de parto, quando romper bolsa, apresentarem sangramento, mas não deve funcionar assim. O final da gestação é um período de muita vulnerabilidade e a gestante precisa ter a garantia de pelo menos uma consulta semanal até o neném nascer, mas isso não acontecia antes e agora em função da pandemia, mais ainda. Essa garantia não está sendo cumprida e muitas gestantes estão sem esse cuidado, sem esse amparo, sem a vigilância necessária em um momento de maior risco”. 

Diretor-geral do ISD aponta riscos que carências de pré-natal podem trazer na gravidez, especialmente nos meses finais | Foto: Rodrigo Nunes – ASCOM/MS

‘Peregrinação para parir’

Outro ponto de fragilidade que ele aponta é a falta de vinculação de muitas gestantes a uma maternidade ou serviço de referência para o parto. Em outras palavras, muitas mulheres não têm a garantia de onde vão parir. “Elas fazem o pré-natal no SUS e isso não garante a elas o lugar, a maternidade que vai recebê-las no momento do parto. A peregrinação para parir ainda é uma realidade brasileira, e ainda é uma realidade nordestina. Essas mulheres muitas vezes chegam a percorrer grandes distâncias, e até mais de um município em busca de uma maternidade, de um hospital que garanta assistência ao parto”. 

O especialista analisa a situação como “uma flagrante violação de direitos que compromete a segurança das gestantes, coloca em risco o resultado da gravidez e indubitavelmente é um fator que potencializa a ocorrência da mortalidade materna”. As mulheres citadas nesta reportagem estavam em diferentes fases da gravidez ou do período pós-parto quando morreram. As notícias que enfocam suas mortes não detalham se problemas como os citados pelo especialista  foram registrados. Familiares de Asheelley e Glaucia, entretanto, disseram, em entrevista à TVRecord e ao G1 que elas não receberam a assistência médica necessária nos últimos dias de vida.

A mãe de Asheelley e a família de outra mulher, Priscila, afirmam ainda que elas contraíram Covid-19 no hospital. As secretarias de saúde de São Paulo e do Rio  de Janeiro negaram falhas nos casos.

Glaucia, que morreu em 24 de março, chegou a ser isolada com suspeita de coronavírus, mas o resultado do teste deu negativo | Imagem: Reprodução G1

Pré-natal: Mulheres ficam privadas de serviço e mais vulneráveis

Na reorganização dos serviços de saúde por causa da pandemia, muitas cidades brasileiras entenderam que o acompanhamento pré-natal e serviços de planejamento familiar não eram essenciais e poderiam ser suspensos –  e isso trouxe “grandes prejuízos e riscos às mulheres”, segundo o diretor do ISD. Elas acabaram, diz ele, privadas de acompanhamento e mais vulneráveis neste momento.

“Isso além de trazer prejuízo à segurança das mulheres, traz o risco de a gente ter, além de complicações inerentes à Covid-19, um aumento do risco obstétrico por outras complicações, como hipertensão na gestação, falta de controle do diabetes gestacional, risco de parto prematuro e de tratamento não adequado (e não oportuno) de infecções ”, observa Freitas Júnior. “Pré-natal é essencial e não pode parar, no SUS e na rede privada, mesmo o pré-natal da gravidez de baixo risco. Ele tem que ser garantido às gestantes brasileiras”. 

Mortes nos estados

Os casos de mortalidade materna associados à Covid-19 mapeados pelo Instituto Santos Dumont  estão distribuídos entre 11 estados, sendo a maioria no Rio de Janeiro (20%) e São Paulo (20%). É no Norte e no Nordeste, entretanto –  regiões que já ostentavam as maiores taxas gerais de mortalidade materna do Brasil, segundo os dados oficiais mais recentes – que estão os piores cenários em uma comparação de taxas de mortalidade por 100 mil habitantes. 

Amapá, Paraíba, Amazonas e Rio Grande do Norte registram, respectivamente, os piores índices considerando esse parâmetro, segundo o levantamento. Na sequência estão Espírito Santo, Pará, Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, São Paulo e Bahia.

Eliane Ramos Rodrigues morreu com o novo coronavírus, em Manaus. Ela estava grávida de oito meses | Imagem: Reprodução Isto É

De forma global, a análise mostra que o Brasil concentra 51,28% das mortes de mulheres grávidas ou que tiveram bebês recentemente no mundo, associadas à suspeita ou confirmação de Covid-19. 

Os dados sugerem que o país tem não só mais vítimas do que outros juntos, mas também a maior taxa de mortes maternas supostamente por Covid-19, por 100.000 habitantes. O número é 21,20% superior ao do Reino Unido, por exemplo, o segundo país em mortes nessa lista, mas, segundo Freitas Júnior, reconhecido como modelo em termos de rede de atenção materna e garantias dos direitos das mulheres. A distância entre os dois países nesse campo também pode ser medido pelos dados mais recentes da Razão de Mortalidade Materna (MMR) divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um retrato das mortes maternas por 100.000 nascidos vivos. O número britânico é quase nove vezes menor que o brasileiro.

  • O assunto foi tema da reportagem “Taxa de mortalidade materna por coronavírus é maior no Brasil do que em 8 países do mundo juntos”, publicada no jornal O Povo, do Ceará. Clique aqui para ler.

Fatores diretos e indiretos fazem quase 40 mil vítimas 

Até a conclusão do levantamento do ISD não existem estatísticas oficiais sobre causas de mortes maternas diretas ou indiretas, como seria a Covid-19, este ano no Brasil. Um boletim publicado nesta semana pelo Ministério da Saúde mostra, entretanto, que, “de 1996 a 2018, foram registrados 38.919 óbitos maternos no país, dos quais aproximadamente 67% por causas obstétricas diretas, ou seja, por complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas”. Os principais motivos identificados são hipertensão, hemorragia, infecção puerperal e aborto.

Já as causas obstétricas indiretas, segundo o Ministério da Saúde, resultam de doenças pré-existentes à gestação ou que se desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas obstétricas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez. São exemplos dessas causas doenças do aparelho circulatório, doenças respiratórias, AIDS e doenças infecciosas e parasitárias maternas. Segundo o boletim, entre 1996 e 2018, as causas indiretas foram responsáveis por 29% das mortes maternas. As demais foram classificadas como causas obstétricas inespecíficas.

O documento chama a atenção para o fato de, em 2009, o surto de influenza A (H1N1) ter contribuído para o aumento de óbitos por causas obstétricas indiretas, mas não analisa a tendência com a Covid-19.

Asheelley, citada no início desta reportagem, foi a mais jovem entre as vítimas da doença identificadas pelo ISD. O atestado de óbito apontou infecção por coronavírus. Mas a família  – no canal de TV onde a morte foi noticiada – acusou o hospital de negligência, alegando demora no atendimento e que ela ficou exposta aos perigos da Covid-19 no hospital. A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo negou, na mesma reportagem, e disse que ela recebeu a assistência necessária.

*Texto atualizado após publicação, para acréscimo de informações.

SAIBA MAIS SOBRE O LEVANTAMENTO DO ISD

O levantamento sobre mortes maternas associadas à Covid-19 foi realizado pelo ISD entre os dias 24/04/2020 e 26/05/2020. A pesquisa foi feita a partir de palavras-chave relacionadas à gravidez, parto e Covid-19, em notícias publicadas em português, inglês e espanhol. Casos encontrados em outras fontes, que não reportagens, foram confirmados junto a fontes oficiais após relatos recebidos pelo ISD sobre mortes nos respectivos estados. O mapeamento levou a casos que teriam ocorrido entre 13 de março (na Polônia) e 24 de maio de 2020 (na Índia). No Brasil, as mortes teriam ocorrido entre 21 de março (em São Paulo) e 23 de maio (Paraíba e no Rio de Janeiro). A de Asheelley, citada no início da reportagem, foi no dia 16 deste mês. Ela teria sido a mais jovem das vítimas. No Brasil, as reportagens que informam idades citam mulheres de 17 a 43 anos*. As que aparecem com nome são Cleide, Selidalva, Priscila, Marília, Aline, Viviane, Rafaela, Regivane, Saionara, Daiane, Joyce, Asheelley, Glaucia e Eliane. No exterior, as mulheres identificadas tinham entre 20 e 43 anos. As que viraram notícia e tiveram nomes divulgados são Eli, Mary Agyeiwaa, Wafa, Fozia, Andrea, Shakeela, Estefanía, Salina, Wegene e Gabriela. De forma global, as mulheres estavam em diferentes estágios de gestação: do “início” (10 semanas) até os 9 meses. A maioria dos partos foi cesárea. Os casos têm ganhado repercussão sem precedentes na mídia e em outras plataformas de comunicação, como as redes sociais. Foi no Facebook, por exemplo, que uma estudante brasileira de doutorado em medicina passou a compartilhar links de reportagens com histórias de mortes de grávidas e puérperas supostamente por Covid-19. Entre as mortes que cita nesse "mapa de reportagens" estão a de Wegene Debele, imigrante etíope de 43 anos que morreu no estado de Washington após o parto, as Mary, Salina e Fozia, na Inglaterra, a Estefanía, na Espanha, e a de Gabriela, no México. Mas é no Brasil que aponta a maioria das vítimas à época: Rafaela, Viviane, Priscila e duas outras mulheres com identidades não reveladas. As mortes por Covid-19 ou não estão sujeitas a confirmações por investigação oficial pelas equipes técnicas da Vigilância Epidemiológica - MS/SVS/CGIAE. Informações do Ministério da Saúde, divulgadas depois do levantamento do ISD, dão pistas do cenário oficial. Os dados mostram que ao menos 484 grávidas foram infectadas pelo novo coronavírus no Brasil e que 36 morreram em decorrência da doença causada por ele, a Covid-19. O boletim não deixa claro se puérperas - as que tiveram bebê recentemente - estão nessa contagem. Se estiverem, Rafaela, da Bahia, Saionara, do Amapá, e uma mãe que o governo do Maranhão descreve como "mulher que foi a óbito, 31 anos, puérpera de óbito fetal" podem ter ficado fora da lista. *O mix de fotos usado na reportagem mostra, da esquerda para a direita: (1ª fileira) Priscila, Marília, Selidalva e Cleide. (2ª fileira) Aline, Viviane, Regivane e Saionara. (3ª fileira) Daiane, Joyce, Rafaela e Asheelley. Glaucia e Eliane também aparecem em fotos na reportagem. Imagens das outras mulheres não foram encontradas até a publicação deste texto, ou foram impossíveis de identificar por meio dos registros de suas mortes.

Nota do Instituto: "A ponta do iceberg"

O levantamento do Instituto Santos Dumont usa uma fonte de informações empregada e validada por pesquisadores no mundo inteiro - e mostra somente a ponta do iceberg desse problema que é crônico e um desafio amplamente reconhecido pela comunidade dos profissionais de saúde do Brasil. Não se trata de uma pesquisa científica. Mas de um alerta. O que o Instituto está fazendo é dar visibilidade à morte materna e chamar a atenção para o fato de nos últimos dois meses a mídia ter veiculado muito mais notícias relacionadas a esse problema do que o fez na última década. É para isso que estamos chamando a atenção. É para a importância de toda a sociedade brasileira entender a mortalidade materna como um problema crônico e que precisa ser enfrentado por todos. A análise do Instituto mapeou 20 mortes no Brasil em um momento em que não havia estatísticas oficiais e, após concluído, um levantamento do próprio Ministério da Saúde apontou 484 mulheres grávidas infectadas pelo novo coronavírus no país e 36 mortas em decorrência da doença causada por ele, a Covid-19. Alguns estados em que o ISD confirmou mortes em boletins oficiais de governo não aparecem nessa conta. Nem todos os casos que o Ministério apresenta também viram notícia. A análise do ISD é um retrato da realidade que não é definitivo, mas que leva a conclusões parecidas com a do próprio governo. A mortalidade materna carece de visibilidade e de solução. Os números são alarmantes e devem ser de conhecimento do público. O Instituto não publicou os dados como uma publicação científica, mas sim na perspectiva da responsabilidade social que vem demonstrando com essa causa em diversos projetos e ações ao longo da sua trajetória. Esse é um tema que o Instituto trabalha e para o qual chama a atenção há muitos anos. Isso não é de hoje.

Text:  Renata Moura / Journalist / Ascom – ISD

Infographic: Renata Moura

Foto 1: Montagem com fotos divulgadas em diversas reportagens sobre mortes maternas associadas à Covid-19 no Brasil. Imagem mostra parte das vítimas.

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